Bloqueio


Há uma encosta, com pouca inclinação e um piso muito irregular. No cimo dessa há uma bola, composta por recordações. Estamos no fundo da encosta e reparamos que a bola se liberta. Começa a rolar muito devagar, mas logo atinge uma grande velocidade. Já não rola, salta. Com cada pulo que dá, amolga as memórias. Estas ficam cada vez mais homogéneas, uma massa uniforme. A massa resultante denomina-se sentimento. Cada vez mais próxima, a bola amedronta-nos. Somos esmagados antes que ela nos toque. No próximo segundo somos atingidos, ficando ela sobre nós, subjugando-nos com o seu peso. Não seguiu o seu caminho, estacou, de propósito, apenas pelo prazer da dor. Olho-a e questiono-a: “Como saio daqui?”

Enfermo


A doença consome,
A solidão pega-se,
A recompensa consola
E a morte mata.

Morrer


Na Terra tudo vive – e só o homem sente a dor e a desilusão da vida.

“Civilização” in Contos, Eça de Queirós

The Letter That Johnny Walker Read


A paisagem corre perante os nossos olhos. Estacamos a observar uma grande massa uniforme, não diferenciando qualquer pormenor no meio desta. A velocidade a que o mundo se desloca é muito superior àquela a que nós estamos habituados. A janela é um bom óculo para efetuar esta verificação.
Podemos ver sem que os outros se apercebam, sequer. Dá-nos uma sensação de conforto e bem-estar, pois temos medo de olhar o outro diretamente. Medo de ser repreendido pela simples e inocente tentativa de conhecer um pouco mais.
Por isso foco-me na Natureza. Esta é bela e permite a compreensão do Homem. A arquitetura de ambos é padronizada, respondendo a critérios básicos de sobrevivência. O que os diferencia é o livre arbítrio e a arte, esta como aplicação de uma teoria a cada caso concreto. Não olho para o Homem, mas sim para o que ele produz. As casas são fabulosas. Mas as árvores também o são. E crescem naturalmente, adaptando-se ao meio em que vivem. O Homem recria o ambiente à sua volta, modificando-o exaustivamente, o que não invalida que a sua obra seja profícua. Afinal também me foco no que é humano. O Homem é uma criatura maravilhosa e asquerosa. O medo e a cobiça o tornam pouco digno da sua condição nominal.
Cedo perante as minhas conclusões anteriores. Gosto do que é estático e do que não pensa, pois tenho medo, um imenso medo da imprevisibilidade de Homem, que tanto constrói como destrói. E a destrutibilidade deste ser é sempre em grande escala. Mas, passando ao lado deste devaneio, eu via o estático em movimento. Alguns podem chamar isto de loucura, mas eu prefiro chamar comboio.
O interior é em tons de amarelo e vermelho, miscigenados de tal forma a impactar o mais desprevenido dos passageiros. É fervilhante sentir que sou um dos poucos a usufruir desta maravilha tecnicista. Olho para trás e vejo mais três pessoas na minha carruagem, com o mesmo ar que eu. É bom sentir que não estou sozinho (isto é mentira!).
Chegou o fim da linha. Desço para a plataforma. Observo mais uma vez o comboio, não para me despedir, mas para lhe dizer um até breve. É também amarelo, mas conta com o potente ferro a matizar a visão. É a melhor palavra para descrever o comboio, potência. É potente a realizar viagens, por isso gosto dele. Viajo pelo meu interior e descubro-me, embora não encontre solução para o homem que sou.
Finalmente o meu olhar descai para o sobrescrito que tenho na mão. Este contém a canção-poema que li na alvorada da viagem. A minha mulher esperava amor e as crianças o alimento, mas só lhes podia oferecer uma garrafa de bagaço. Tive medo e fugi, desvairado.

Como o Vento


O fugaz passeio que me leva ao conhecimento da cidade esconde a beleza demorada desta. É um manto de modernidade, um ruído furioso da maquinaria que impede a perceção do mundo no seu estado puro.
Mas o mundo tende a impor-se, de uma qualquer forma. Pela raridade do que é natural, atualmente destaca-se a pureza no meio do betão. Levanta-se o vento. O cabelo é fustigado pela sua força. Apesar do calor da solidão, há algo novo que este vento traz. Uma mudança invisível, que nos conforta interiormente, pelo simples facto de adrenalizar o sentimento de novidade, necessidade do ser humano.
O cabelo levanta voo. A força exercida pelo vento é imensa. Urge encontrar abrigo, que nos proteja como se de uma mãe se tratasse. Aproximo-me do tronco e só então percebo que a árvore já fora despida. Reconheço que não tinha reparado nesse pormenor. A sua postura sedutora envolveu-me, aliada já ao descrito estado de nudez. O seu erotismo dançava-me em frente aos olhos. Enganei-me. Esta árvore não era mãe, mas sim uma prostituta. Mesmo assim não resisti à maternidade desta meretriz e escondi-me nela. O seu regaço era quente como nunca tinha visto. Mas então pensei que nunca tinha trocado a segurança pelo prazer. Já não estava à procura de abrigo, demandava aventura, uma qualquer forma de alheamento feliz e compensatório.
Disciplinei o meu cérebro. Levantei-me e voei com o vento para onde ele me quis levar. Afinal o vento foi feito para nos fazer mover ao seu sabor, não para nos obrigar a esconder, com medo. Ir com o vento é ter coragem.

Canção do Mestiço


Mestiço!

Nasci do negro e do branco
E quem olhar para mim
É como se olhasse
Para um tabuleiro de xadrez:
A vista passando depressa
Fica baralhando cor
No olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
Uma alma feita de adição
Como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
O branco cheio de raiva
Contou os dedos das mãos
Fez uma tabuada e falou grosso:
-mestiço!
A tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
            Mas eu não me danei…
E muito calminho
Arrepanhei o meu cabelo para trás

Fiz saltar fumo do meu cigarro
Cantei do alto
A minha gargalhada livre
Que encheu o branco de calor!...

Mestiço!

Quando amo a branca
            Sou branco…
Quando amo a negra
            Sou negro.
            Pois é…

Ilha de Nome Santo, Francisco José Tenreiro

Raticidade



Como é que um gajo se atira para a frente com uma guitarra e quer encarar o público, mas depois tem vergonha de falar de coisas que acontecem, como chorar porque a namorada não gosta dele? Desde sempre faço questão de falar de assuntos que nos tornam frágeis – mas porque somos frágeis na cabeça, não pela ação em si. Temos uma regra: não ter um dicionário de temas tabu; às vezes quem faz música parece que tem um dicionário corrente e um de tabus, onde não se toca. Há que falar desses temas, torná-los naturais, deixar esses preconceitos e essa forma de estar tacanha. Temos de crescer, e crescer é não só encarar as nossas vitórias como também as nossas derrotas e fraquezas. Lutar contra esta ideia de que, se não ganhas à Espanha, o mundo acabou, quando nas derrotas também conseguimos ver as coisas boas, como a perceção de que há gente melhor que nós, e que temos de trabalhar ou lutar para conseguir ser como eles. Não é um gajo desaparecer ou deixar de falar, porque isso te perturba.

Virgem Suta na Blitz

O Passageiro Walter Benjamin, de Ricardo Cano Gaviria




Um tumulto. Um sofrimento inexplicado e inexplicável. Morrer é a única salvação para um homem que nunca amou nem foi amado. Nem a própria liberdade ele amava, embora a procurasse. Demandou em vão. Sucumbiu perante um obstáculo – o próprio ser humano. A obstrução efetuada pela mentalidade dos Homens favorece a corrupção e destruição de qualquer sonho, inibe a luta. A Vida é uma luta que magoa mas não fere. O único caminho é a Vida. E o fracasso é a morte. Morre-se por não obter dividendos da vida. Estamos sedentos de amor, mas sempre sacrificamos o amor por coisa nenhuma. Nem o objetivo “Liberdade” é suficiente para renegar a falta de amor. Walter Benjamin é assim que morre. Mas antes da morte já estava morto. Percebe que errou uma vida inteira. Dedicou-se à quantidade e não à qualidade. Pode não ter sido livre para se opor ao regime, mas foi livre para escolher amar. A mulher é um plano essencial neste processo de conhecimento de si mesmo. Não sentiu um amor de mãe na infância e procurou-o em várias mulheres, que nunca o conseguiram dar, pois Benjamin não se tinha descoberto a si próprio. A auto-análise realizou-se sob o medo mais infantil de algo que não existe: um papão. Aprender a defender-se sozinho pode ter custos demasiado elevados, tendo por exemplo a impreparação para a sociedade. E o medo prolonga-se até ao desespero. A solidão é o pior que pode acontecer e Walter Benjamin prova-o. A solidão leva ao medo, o medo ao desespero, o desespero ao pensamento, o pensamento à análise, a análise ao arrependimento e o arrependimento à sensação de fracasso. E o fracasso é a morte. Walter Benjamin, um errante peregrino procurando o sonho americano, sem um sonho próprio, vivendo o momento. Finalmente em paz.

Universalidade



Se as coisas forem aparência, também eu sou aparência e elas são, assim, iguais a mim. É isso que as torna tão queridas e veneráveis aos meus olhos: elas são iguais a mim. É por isso que as posso amar. E isto é um ensinamento que te fará rir: o amor, Govinda, parece-me ser o mais importante. Compreender o mundo, explicá-lo, desprezá-lo, são coisas que poderão agradar aos grandes pensadores. Mas eu considero mais importante amar o mundo, não o desprezar, não o odiar nem me odiar, observá-lo, a mim e a todos os seres com amor e admiração e respeito.

Siddhartha, Hermann Hesse

Abrir as Asas e Voar



Que triste figura fazem os que imaginam
Que o mundo só existe para eles
E o tentam descrever num poema ou num romance.
Este pequeno poder ilusório
Infestou há muito as páginas dos livros
Suportado pela bênção de quem os louva.
Muito padecerá quem assim pensar.

A literatura nada muda. Não pode.
Poderão, se tanto, mudar as regras
Que a regulam e limitam.
Toda a vida se escreveram livros
Que falam de outros livros
Que falam de outros lugares,
Que falam de outras pessoas.
A Literatura está cansada
Dos jogos do poder e da vaidade
Que em nome dela se praticam.
A literatura quer viver a sua vida
Sem ter quem a policie e interprete.
Não quer estar confinada aos laboratórios,
Nem ao exercício interminável da pesquisa.

Ela fala de pessoas e dos seus dramas
E não gosta que a cataloguem ou classifiquem.
Às vezes apetece-lhe abrir as asas e voar.

O Livro Branco da Melancolia, José Jorge Letria

Olhar




Os olhos limitam o ser humano. Não vamos para além do que eles nos mostram. Podem enganar-nos, podem seduzir-nos. A ilusão é por vezes tão forte que nos faz cometer erros. Temos de usar muletas, ou melhor, óculos. Tudo é filtrado, conduzido para o cérebro através de um único canal, sem qualquer desvio.
A linearidade é o mais comum neste tipo de casos. Ou se vê, bem ou mal, ou não se vê. No entanto há certos pormenores que sempre ressaltam. Ocorre a chamada arritmia ou, simplesmente, quebra de rotina. Nos momentos de pressão o ritmo aumenta, o sangue ferve e a decisão sai, livre do conceito, aproximada ao vazio da racionalidade. É perto do fim que as decisões se tornam mais intensas. Cada momento é elevado à magnificência e agradecido sem reservas.
Por isso beijo os olhos. Procuro completar a visão com o tacto. É uma imagem em que se pode tocar. Até cheirar e saborear. E mesmo ouvir. A verdade (linear) é substituída pela completa sedução, que me demove do mais firme objetivo. E sinto, sinto, sinto. Tento não perder nada, mas infelizmente desaproveito tudo. Morro. Inútil.

A Caixa Mundo



Quem comete um erro é excluído; é fechado dentro de uma caixa. Quem está fora vê apenas a caixa. Mas quem está fechado, excluído, consegue ver cá para fora. Vê tudo, vê-nos a todos.
Em cada compartimento há dezenas de caixas. Milhares de caixas por todo o lado. A maior parte delas vazia. Outras têm lá dentro pessoas excluídas. Ninguém sabe quais as caixas que têm pessoas.
As caixas são tantas que ninguém lhes dá importância. Pode estar lá uma pessoa, até a que amas, mas nem olhas. Já não produzem efeito. Passas por elas centenas de vezes.

Jerusalém, Gonçalo M. Tavares

Terra


É que a vida não gosta de sofrer. A terra anda procurar dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos. Sim, faz conta ela é uma costureira dos sonhos.
Terra Sonâmbula, Mia Couto

Guerra e Paz



Parte I

Não há compaixão. A história do horror continua. O Mal é o motor da história. O Mal pode encarnar em tudo. E não conseguimos soltar as amarras de tudo. Viver com ou sem? Faz diferença retirar a palavra ‘viver’ da pergunta anterior? Agora não. A ideia já foi compreendida. A presença não interessa. É a ausência, cara leitora, que lhe revelará a minha presença. E é esta falta que motivará a continuação da história, uma narrativa de desejo e repulsa momentâneos. Esta só avança no tempo aos fins de semana. Durante esse espaço é esquecida, pois há outros contos mais importantes que sangrarão se não forem referidos. Os nossos olhos é que não podem sangrar e se, porventura, acontecer temos de o colecionar com as nossas próprias mãos, pois ninguém mais reparará. Mas voltemos à história, aquela que só se desenvolve ao fim de semana. O Mal encarna numa personagem, um Iago, mas com outro nome, mais aproximado d’ Os Miseráveis. E destrói o meio-sonho de uma vida. Não que quisesse viver desta forma, mas era a mais cómoda, por isso chamo-a de meio-sonho. Gostava de ter mais sonho, mas iria incomodar e a leitora já tem o seu sonho completo, incluindo um Iago aproximado a’ Os Miseráveis que lhe debita aquilo que deve dar aos seus verdadeiros amigos, controlando a sua existência, pensando por si. Mas não deixa de ser Iago, uma personagem tomada pela maldade, que nada diz senão com a intenção de a tocar e resolver o próprio tesão social do qual quase ninguém o quer aliviar. Só você é que continua a cair nestas malfeitorias, cara leitora. Mas foi a última vez que lhe falei nisto, cara leitora. Vou colocar-me dentro da minha caixinha, que por sua vez está dentro de outra um pouco maior, e assim sucessivamente, perfazendo um total de dezassete caixas. Isto das caixas tem a sua utilidade. Colocamo-nos dentro de uma e não incomodamos nunca mais. Serve de apartamento à sociedade. Mesmo que queiramos sair dela há sempre outra por fora que nos dificulta a evasão. É preciso muita paciência. Cara leitora, não ligue ao que lhe tenho dito, posso estar equivocado. Além disso já devia ter percebido que você é que sabe sempre tudo.

Parte II

Dizem que a linha que separa a sanidade da loucura é muito ténue. Cara leitora, você é louca. Enfia balas no peito de quem se cruza consigo à primeira oportunidade. Mate-me, cara leitora, estou desarmado à sua espera. Porque não me mata? Falta-lhe coragem? Pois, já esperava isso. Tenha dó de si mesma. Dê aos pobres aquilo de que não precisa, aquilo que a faz sofrer. Neste mundo ou se sofre ou se faz sofrer, e você faz as duas coisas. Deixe uma delas de lado, pelo menos. Do mesmo pode ser feliz ou pode fazer outro feliz. O mundo também tem esta faceta. O problema é que o Bem não faz avançar as narrativas. Estagnemos e vivamos o momento. Faça por esquecer a sua própria história passada que eu prometo que farei o mesmo com a minha. Mas é você quem tem de começar, cara leitora. Já não tenho força para tomar a iniciativa. Pegue na pistola e acabe comigo de uma vez, se não quiser suspender a história. Já mais nada resulta, apenas quero paz. Não olhe assim para mim. Quem errou foi você, cara leitora. Mas eu morro por si e perdoo todos os seus pecados. Não morra por mim, por favor. O sofrimento foi muito maior do meu lado que do seu. Se há alguém que deve morrer sou eu, você faz muita falta aos outros. Mas lembre-se que apenas morri porque quero paz. Morri porque sou bom, e o Bem em nada nos faz avançar. Cara leitora, isto é revolta. Mas eu amo-a, cara leitora.