Aniversário


A vida é uma estrada que nos conduz por inusitados caminhos. Recordo aquele aniversário, apenas sonhado, em que viajei até ao Porto para um passeio pelo parque, contigo. Ainda suado da caminhada desde a estação, encontro sombra junto das frondosas árvores, abrigos naturais, que ajudam a recuperar o fôlego. Aí pego na tua mão e corro pela relva, levando-te até ao lago coberto de verdete. Parece sólido, apetece caminhar sobre ele, testar o seu limite de resistência. Aproximas-te dele e toca-lo. Formam-se pequenas ondas que se arrastam até à borda onde me encontro. Foi aí que tive a certeza de que te amo. A tua simplicidade abateu-se sobre mim de uma forma que eu nunca tinha sentido. Nesse momento posso viver ou morrer contigo, é um tanto faz.
Volto a procurar a tua mão e levo-te para fora do parque. O calor já não sufoca tanto, é mais fácil deambular pela rua. A fome começa a apertar e é necessário satisfazê-la. Como a felicidade não depende daquilo que se come, uma francesinha chega para saciar o animal. Do jantar pouco me recordo em relação a ti, a não ser que tinhas um sorriso de orelha a orelha e que falavas como se a humanidade canalizasse toda a sua voz por ti. Como gosto de te ouvir falar! A tua palavra é alegria, que se mistura com o ar, perfumando-o. O teu olhar transmite-me confiança e sinto-me completamente preenchido por ela. É muito bom perceber que alguém acredita em nós. Espero que isto continue para sempre.
A noite não ficaria completa se não fossemos ouvir música a um bar. Uma sala antiga, com uma certa aura mágica. Havia mesas para dois, quadradas, cobertas com toalhas vermelhas, junto às laterais, abrindo uma enorme clareira, utilizada pelos clientes como espaço de dança. Sentámo-nos perto da porta e pedimos apenas um copo de água. Observando a sala, que se encontrava a meia-luz, reparei num casal que discutia no canto oposto ao que me encontrava. A mulher olhava o homem com um ar carrancudo, enquanto este se apresentava apreensivo, como se não percebesse por que razão discutia. Neste momento a minha atenção foi desviada por algo que tocava na minha mão. Era o teu indicador que me chamava de volta. Só aí compreendi o que ele me queria. A música que tocava era a “Wonderful Tonight” do Eric Clapton. E tu pedias que a dançasse contigo. Como um cavalheiro, peguei na tua mão, levei-te à pista e coloquei-te as mãos na cintura, enquanto fazias o mesmo nos meus ombros. A lentidão dessa balada favorece-nos, é mais fácil conduzir-te. E eu gosto de sentir o teu coração a palpitar, é um teste à minha própria vida. Há músicas que nunca deviam acabar, mas a verdade é que esta chegou ao fim. Saímos para a rua e já encontramos uma leve brisa, normal na zona da Ribeira. Chegamo-nos ao rio e ficamos no silêncio a observar a água. Eu não penso em nada, apenas observo e interiorizo toda aquela água calma. Já tu pareces refletir sobre algo que eu não sei. É importante, de certeza, mas está fora da minha compreensão.
Chegou a hora de voltar. O comboio que nos trouxe é o mesmo que nos devolve a Espinho. “Ainda há uma padaria aberta, podíamos ir lá buscar qualquer coisa”. Acabámos por levar dois travesseiros e dois chocolates quentes. Resolvemos cear na praia, apesar da presença de um frio cortante. Notei que tu tremias, por isso queimei a caixa dos bolos e uns pauzinhos que por lá havia. Para além da fogueira, tirei o meu casaco e cobri-te com ele. Mas isso não te chegava, tive de te abraçar. E foi nesse conforto que bebemos o nosso chocolate quente. Entretanto, o teu olhar ficou triste, cheio de dúvidas e, olhando o mar, perguntaste “Como vai ser agora?”. Fiquei sem perceber qual a resposta esperada, mas mesmo assim respondi. “Não sei o que é suposto acontecer, mas percebi que é impossível esconder a beleza do mundo. Seria um acto puramente egoísta. A beleza é melhor quando partilhada, fazendo o outro feliz. O que vai ser agora é o que tu fizeres. Mostro-te um caminho, queres segui-lo? Gostava que o seguisses, que o fizesses comigo. Lembra-te que é mais fácil enfrentar o mundo de mãos dadas. «Quero vivê-lo em cada vão momento e em seu louvor hei de espalhar meu canto e rir meu riso e derramar meu pranto ao seu pesar ou seu contentamento». Quero partilhar a minha vida contigo, amo-te!”. E beijei-te.

Dom Casmurro

Copos espalhados pela mesa. O grupo de convivas bebe o vinho da união, alegra-se e esquece o demais. Um deles fala desalmadamente dos seus pais, outro das suas saídas noturnas, outro das suas namoradas… É neste ambiente quente que se desenrola o ato da traição. Chega a rapariga, com calças de ganga justas e uma camisa branca. Do lugar onde está, um dos convivas olha discretamente para ela. Os olhares são furtivos e repetidos, mas nos quais se denota uma vergonha imensa, mas também um amor sincero, não apenas desejo carnal. À parte disto, um outro dos do grupo limita o seu campo de visão à mulher. Não conversa mais, a não ser que seja para se exibir, conquistando a atenção da rapariga. Esta mostra que necessita de atenção e, mal saem do restaurante, embora misturados com o grupo, os dois juntam-se, formando uma espécie de grupo à parte e nunca mais se largam. Há apenas uma pessoa que repara nisto: aquele que tem um amor puro e que apenas lança olhares. O par fica junto até à hora da despedida. Quando chegarem cada um a sua casa vão trocar mensagens, talvez até combinar encontros para os seguintes dias. Mas antes de tudo isto, a rapariga vai no carro com o seu amigo calmo e envergonhado. Quando findou a viagem, ela olhou-o descontraidamente e atirou-lhe com um ‘boa noite’ terno mas desinteressado. O rapaz sente-se invadido por uma imensa tristeza, mas responde também afetuosamente. Não se devem direcionar os conflitos para quem os não merece. O jovem entra em casa e lança-se para cima da cama, chorando incontrolavelmente: ‘Porque é que tenho amigos?’