Canção do Mestiço


Mestiço!

Nasci do negro e do branco
E quem olhar para mim
É como se olhasse
Para um tabuleiro de xadrez:
A vista passando depressa
Fica baralhando cor
No olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
Uma alma feita de adição
Como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
O branco cheio de raiva
Contou os dedos das mãos
Fez uma tabuada e falou grosso:
-mestiço!
A tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
            Mas eu não me danei…
E muito calminho
Arrepanhei o meu cabelo para trás

Fiz saltar fumo do meu cigarro
Cantei do alto
A minha gargalhada livre
Que encheu o branco de calor!...

Mestiço!

Quando amo a branca
            Sou branco…
Quando amo a negra
            Sou negro.
            Pois é…

Ilha de Nome Santo, Francisco José Tenreiro

Raticidade



Como é que um gajo se atira para a frente com uma guitarra e quer encarar o público, mas depois tem vergonha de falar de coisas que acontecem, como chorar porque a namorada não gosta dele? Desde sempre faço questão de falar de assuntos que nos tornam frágeis – mas porque somos frágeis na cabeça, não pela ação em si. Temos uma regra: não ter um dicionário de temas tabu; às vezes quem faz música parece que tem um dicionário corrente e um de tabus, onde não se toca. Há que falar desses temas, torná-los naturais, deixar esses preconceitos e essa forma de estar tacanha. Temos de crescer, e crescer é não só encarar as nossas vitórias como também as nossas derrotas e fraquezas. Lutar contra esta ideia de que, se não ganhas à Espanha, o mundo acabou, quando nas derrotas também conseguimos ver as coisas boas, como a perceção de que há gente melhor que nós, e que temos de trabalhar ou lutar para conseguir ser como eles. Não é um gajo desaparecer ou deixar de falar, porque isso te perturba.

Virgem Suta na Blitz

O Passageiro Walter Benjamin, de Ricardo Cano Gaviria




Um tumulto. Um sofrimento inexplicado e inexplicável. Morrer é a única salvação para um homem que nunca amou nem foi amado. Nem a própria liberdade ele amava, embora a procurasse. Demandou em vão. Sucumbiu perante um obstáculo – o próprio ser humano. A obstrução efetuada pela mentalidade dos Homens favorece a corrupção e destruição de qualquer sonho, inibe a luta. A Vida é uma luta que magoa mas não fere. O único caminho é a Vida. E o fracasso é a morte. Morre-se por não obter dividendos da vida. Estamos sedentos de amor, mas sempre sacrificamos o amor por coisa nenhuma. Nem o objetivo “Liberdade” é suficiente para renegar a falta de amor. Walter Benjamin é assim que morre. Mas antes da morte já estava morto. Percebe que errou uma vida inteira. Dedicou-se à quantidade e não à qualidade. Pode não ter sido livre para se opor ao regime, mas foi livre para escolher amar. A mulher é um plano essencial neste processo de conhecimento de si mesmo. Não sentiu um amor de mãe na infância e procurou-o em várias mulheres, que nunca o conseguiram dar, pois Benjamin não se tinha descoberto a si próprio. A auto-análise realizou-se sob o medo mais infantil de algo que não existe: um papão. Aprender a defender-se sozinho pode ter custos demasiado elevados, tendo por exemplo a impreparação para a sociedade. E o medo prolonga-se até ao desespero. A solidão é o pior que pode acontecer e Walter Benjamin prova-o. A solidão leva ao medo, o medo ao desespero, o desespero ao pensamento, o pensamento à análise, a análise ao arrependimento e o arrependimento à sensação de fracasso. E o fracasso é a morte. Walter Benjamin, um errante peregrino procurando o sonho americano, sem um sonho próprio, vivendo o momento. Finalmente em paz.

Universalidade



Se as coisas forem aparência, também eu sou aparência e elas são, assim, iguais a mim. É isso que as torna tão queridas e veneráveis aos meus olhos: elas são iguais a mim. É por isso que as posso amar. E isto é um ensinamento que te fará rir: o amor, Govinda, parece-me ser o mais importante. Compreender o mundo, explicá-lo, desprezá-lo, são coisas que poderão agradar aos grandes pensadores. Mas eu considero mais importante amar o mundo, não o desprezar, não o odiar nem me odiar, observá-lo, a mim e a todos os seres com amor e admiração e respeito.

Siddhartha, Hermann Hesse