No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?


Os Lusíadas, Camões

O Fim do Tempo

“A cristandade sempre governará com leis distintas até que uma nova fonte de ouro e prata for descoberta.”


Profecias, Nostradamus

Provisão

“A Espanha, Castela, Portugal, Aragão estarão muito sujeitos a súbitas alterações e temerão muito morrer, tanto os jovens quanto os velhos; e por essa razão, eles se manterão bem aquecidos, e em geral contarão o seu dinheiro, caso o tenham.”


Prognósticos Pantagruélicos, Rabelais

Não o sonho

Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.

Atropelamento e Fuga, Manuel António Pina

Tortura

"Eu queria dizer que isto era sentido, e não pensado, pela bondosa menina; mas não sei se o rigor filosófico me permitirá a linguagem; e, contudo, não vejo como de outra sorte dar conta deste frequente fenómeno psicológico – o da persistência de certas crenças irracionais, nos espíritos mais vigorosos e lógicos."

Uma Família Inglesa, Júlio Dinis

Estar Só É Estar No Íntimo do Mundo

Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

Poemas Inéditos, António Ramos Rosa

Sábado 31


Mar Sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós.
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

Dia do Mar, Sophia de Mello Breyner

Aniversário


A vida é uma estrada que nos conduz por inusitados caminhos. Recordo aquele aniversário, apenas sonhado, em que viajei até ao Porto para um passeio pelo parque, contigo. Ainda suado da caminhada desde a estação, encontro sombra junto das frondosas árvores, abrigos naturais, que ajudam a recuperar o fôlego. Aí pego na tua mão e corro pela relva, levando-te até ao lago coberto de verdete. Parece sólido, apetece caminhar sobre ele, testar o seu limite de resistência. Aproximas-te dele e toca-lo. Formam-se pequenas ondas que se arrastam até à borda onde me encontro. Foi aí que tive a certeza de que te amo. A tua simplicidade abateu-se sobre mim de uma forma que eu nunca tinha sentido. Nesse momento posso viver ou morrer contigo, é um tanto faz.
Volto a procurar a tua mão e levo-te para fora do parque. O calor já não sufoca tanto, é mais fácil deambular pela rua. A fome começa a apertar e é necessário satisfazê-la. Como a felicidade não depende daquilo que se come, uma francesinha chega para saciar o animal. Do jantar pouco me recordo em relação a ti, a não ser que tinhas um sorriso de orelha a orelha e que falavas como se a humanidade canalizasse toda a sua voz por ti. Como gosto de te ouvir falar! A tua palavra é alegria, que se mistura com o ar, perfumando-o. O teu olhar transmite-me confiança e sinto-me completamente preenchido por ela. É muito bom perceber que alguém acredita em nós. Espero que isto continue para sempre.
A noite não ficaria completa se não fossemos ouvir música a um bar. Uma sala antiga, com uma certa aura mágica. Havia mesas para dois, quadradas, cobertas com toalhas vermelhas, junto às laterais, abrindo uma enorme clareira, utilizada pelos clientes como espaço de dança. Sentámo-nos perto da porta e pedimos apenas um copo de água. Observando a sala, que se encontrava a meia-luz, reparei num casal que discutia no canto oposto ao que me encontrava. A mulher olhava o homem com um ar carrancudo, enquanto este se apresentava apreensivo, como se não percebesse por que razão discutia. Neste momento a minha atenção foi desviada por algo que tocava na minha mão. Era o teu indicador que me chamava de volta. Só aí compreendi o que ele me queria. A música que tocava era a “Wonderful Tonight” do Eric Clapton. E tu pedias que a dançasse contigo. Como um cavalheiro, peguei na tua mão, levei-te à pista e coloquei-te as mãos na cintura, enquanto fazias o mesmo nos meus ombros. A lentidão dessa balada favorece-nos, é mais fácil conduzir-te. E eu gosto de sentir o teu coração a palpitar, é um teste à minha própria vida. Há músicas que nunca deviam acabar, mas a verdade é que esta chegou ao fim. Saímos para a rua e já encontramos uma leve brisa, normal na zona da Ribeira. Chegamo-nos ao rio e ficamos no silêncio a observar a água. Eu não penso em nada, apenas observo e interiorizo toda aquela água calma. Já tu pareces refletir sobre algo que eu não sei. É importante, de certeza, mas está fora da minha compreensão.
Chegou a hora de voltar. O comboio que nos trouxe é o mesmo que nos devolve a Espinho. “Ainda há uma padaria aberta, podíamos ir lá buscar qualquer coisa”. Acabámos por levar dois travesseiros e dois chocolates quentes. Resolvemos cear na praia, apesar da presença de um frio cortante. Notei que tu tremias, por isso queimei a caixa dos bolos e uns pauzinhos que por lá havia. Para além da fogueira, tirei o meu casaco e cobri-te com ele. Mas isso não te chegava, tive de te abraçar. E foi nesse conforto que bebemos o nosso chocolate quente. Entretanto, o teu olhar ficou triste, cheio de dúvidas e, olhando o mar, perguntaste “Como vai ser agora?”. Fiquei sem perceber qual a resposta esperada, mas mesmo assim respondi. “Não sei o que é suposto acontecer, mas percebi que é impossível esconder a beleza do mundo. Seria um acto puramente egoísta. A beleza é melhor quando partilhada, fazendo o outro feliz. O que vai ser agora é o que tu fizeres. Mostro-te um caminho, queres segui-lo? Gostava que o seguisses, que o fizesses comigo. Lembra-te que é mais fácil enfrentar o mundo de mãos dadas. «Quero vivê-lo em cada vão momento e em seu louvor hei de espalhar meu canto e rir meu riso e derramar meu pranto ao seu pesar ou seu contentamento». Quero partilhar a minha vida contigo, amo-te!”. E beijei-te.

Dom Casmurro

Copos espalhados pela mesa. O grupo de convivas bebe o vinho da união, alegra-se e esquece o demais. Um deles fala desalmadamente dos seus pais, outro das suas saídas noturnas, outro das suas namoradas… É neste ambiente quente que se desenrola o ato da traição. Chega a rapariga, com calças de ganga justas e uma camisa branca. Do lugar onde está, um dos convivas olha discretamente para ela. Os olhares são furtivos e repetidos, mas nos quais se denota uma vergonha imensa, mas também um amor sincero, não apenas desejo carnal. À parte disto, um outro dos do grupo limita o seu campo de visão à mulher. Não conversa mais, a não ser que seja para se exibir, conquistando a atenção da rapariga. Esta mostra que necessita de atenção e, mal saem do restaurante, embora misturados com o grupo, os dois juntam-se, formando uma espécie de grupo à parte e nunca mais se largam. Há apenas uma pessoa que repara nisto: aquele que tem um amor puro e que apenas lança olhares. O par fica junto até à hora da despedida. Quando chegarem cada um a sua casa vão trocar mensagens, talvez até combinar encontros para os seguintes dias. Mas antes de tudo isto, a rapariga vai no carro com o seu amigo calmo e envergonhado. Quando findou a viagem, ela olhou-o descontraidamente e atirou-lhe com um ‘boa noite’ terno mas desinteressado. O rapaz sente-se invadido por uma imensa tristeza, mas responde também afetuosamente. Não se devem direcionar os conflitos para quem os não merece. O jovem entra em casa e lança-se para cima da cama, chorando incontrolavelmente: ‘Porque é que tenho amigos?’

Baile (fim)


Primeiro a toalha, vermelha-sangue, escorrendo pela mesa à medida que era desdobrada. De seguida os copos do mais rico cristal, brilhantes, refletindo a toalha. Vêm os pratos e os talheres, reluzentes, contribuindo de forma harmoniosa para uma apetecível visão desde a entrada do salão.
Não se pode esquecer o centro de mesa. Rosas brancas foram as flores escolhidas. O contraste entre estas e a toalha é perfeito. Há uma ousadia que se junta a uma pureza, apimentando uma noite que deverá ser inesquecível.
Quando os convidados entrarem as luzes vão deixar tudo numa penumbra assombrosa. As senhoras vão agarrar o braço aos acompanhantes, quer seja com medo de uma possível queda, quer seja pelo simples espanto de ver uma sala tão deslumbrante. É nela que vão passar uma noite, ou talvez “a” noite. Os senhores vão embebedar-se, tendo, porém, sobriedade suficiente para agarrar a companheira ou uma outra qualquer que esteja próxima. Já as senhoras vão estar preocupadas com a sua vestimenta e maquilhagem, até porque pode ser ali que encontrem a garantia de um futuro radioso. E ninguém pode ter um bom futuro se estiver mal vestido.
Que disparate! Estes pensamentos ocultaram da mente o mais importante: a lista dos convidados daquela mesa. Branca como as rosas, a lista tinha oito nomes, escritos a negro com uma letra curvilínea. Pedro começou a imaginar como seriam as figuras por trás desses nomes, até que chegou ao sétimo. Ai, mais do que imaginar, ele viu. Viu o vestido dançante num pequeno corpo delicado e perfumado. Viu o minúsculo sapato branco que se movia freneticamente. A carteira tinha-a ele na mão. E Pedro chorou. Eram a saudade e a incompreensão que o matavam, lentamente, ao ritmo de uma imparável ampulheta. Cinco minutos depois, já recomposto, dentro do possível, olha então para o oitavo nome. Também o visualiza claramente. Um homem enorme, bruto, mas cuja autoridade tudo atraía a si. Talvez fosse por isso que Raquel ficasse com ele. E Pedro sentiu a raiva no estômago, espalhando-se de seguida pelos seus membros. Era um verdadeiro monstro que crescia dentro dele, matando-o da mesma forma que a saudade o fazia.
A única atitude que Pedro poderia tomar era a de ser Homem, portanto o que ele simplesmente saiu do salão, foi ao cacifo buscar tabaco e sentou-se num banco de jardim, à conversa com os velhos que jogavam cartas, tragando lentamente um cigarro.

A máquina-mundo


“Talvez não seja maravilhoso ser bom, 6655321zinho! Talvez seja horrível ser bom. E quando te digo isto, compreendo como isto te pode parecer contraditório. Sei que vou passar muitas noites em branco a pensar nisto. Quais os desígnios de Deus? Quererá Ele o Bem, ou a escolha do Bem? Um homem que escolhe o Mal, será por acaso ou de certo modo, melhor do que um homem a quem impõem o Bem? Difíceis e profundas dúvidas, meu pequeno 6655321.”

Anthony Burgess, A laranja mecânica

Soneto do Corifeu, in Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes



São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.
Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.
Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.

Soneto da Fidelidade, de Vinicius de Moraes

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Blindness, realizado por Fernando Meirelles



Em terra de cego, quem tem olho é rei (e quem o não tem vê bem na mesma).

Binómio


Um rosto banhado em luz. O cabelo castanho refletia o sol, numa fecundação perfeita da criação, enquanto a expressão era dupla, confusa portanto.
A lua também possui duas faces, não deixando de ser o mesmo corpo. O humano apresenta a face social e a individual. A social é benigna, risonha e falsa. O sorriso é o correto na relação interpessoal. “És um estúpido do caralho!!!”. O outro ri-se. “Porque te ris?”. “Não sei, mas é melhor que fazer qualquer outra coisa”.
A tristeza tem de ser individual. É na sombra que a melancolia desperta, florescendo como se de uma planta se tratasse. O olho está mais aberto na escuridão. Nada ofusca a procura da essência quando a solidão do deserto não tem fim. Será isso?
É assim o teu rosto, fraturado em dois, um jogo de forças impossível de parar. Consegues conciliar?
(A Vontade, a Moral e a Decisão são IMPORTANTES)

Ser "Cristão"


Um dia decidirei quando será o dia de dizer depois de amanhã, e talvez nem seja preciso, se a morte definidora vier antes desobrigar-me do compromisso, que essa, sim, é a pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade que a nós próprios negámos.

O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago