Abrir as Asas e Voar



Que triste figura fazem os que imaginam
Que o mundo só existe para eles
E o tentam descrever num poema ou num romance.
Este pequeno poder ilusório
Infestou há muito as páginas dos livros
Suportado pela bênção de quem os louva.
Muito padecerá quem assim pensar.

A literatura nada muda. Não pode.
Poderão, se tanto, mudar as regras
Que a regulam e limitam.
Toda a vida se escreveram livros
Que falam de outros livros
Que falam de outros lugares,
Que falam de outras pessoas.
A Literatura está cansada
Dos jogos do poder e da vaidade
Que em nome dela se praticam.
A literatura quer viver a sua vida
Sem ter quem a policie e interprete.
Não quer estar confinada aos laboratórios,
Nem ao exercício interminável da pesquisa.

Ela fala de pessoas e dos seus dramas
E não gosta que a cataloguem ou classifiquem.
Às vezes apetece-lhe abrir as asas e voar.

O Livro Branco da Melancolia, José Jorge Letria

Olhar




Os olhos limitam o ser humano. Não vamos para além do que eles nos mostram. Podem enganar-nos, podem seduzir-nos. A ilusão é por vezes tão forte que nos faz cometer erros. Temos de usar muletas, ou melhor, óculos. Tudo é filtrado, conduzido para o cérebro através de um único canal, sem qualquer desvio.
A linearidade é o mais comum neste tipo de casos. Ou se vê, bem ou mal, ou não se vê. No entanto há certos pormenores que sempre ressaltam. Ocorre a chamada arritmia ou, simplesmente, quebra de rotina. Nos momentos de pressão o ritmo aumenta, o sangue ferve e a decisão sai, livre do conceito, aproximada ao vazio da racionalidade. É perto do fim que as decisões se tornam mais intensas. Cada momento é elevado à magnificência e agradecido sem reservas.
Por isso beijo os olhos. Procuro completar a visão com o tacto. É uma imagem em que se pode tocar. Até cheirar e saborear. E mesmo ouvir. A verdade (linear) é substituída pela completa sedução, que me demove do mais firme objetivo. E sinto, sinto, sinto. Tento não perder nada, mas infelizmente desaproveito tudo. Morro. Inútil.