Parte I
Não há
compaixão. A história do horror continua. O Mal é o motor da história. O Mal
pode encarnar em tudo. E não conseguimos soltar as amarras de tudo. Viver com
ou sem? Faz diferença retirar a palavra ‘viver’ da pergunta anterior? Agora
não. A ideia já foi compreendida. A presença não interessa. É a ausência, cara
leitora, que lhe revelará a minha presença. E é esta falta que motivará a
continuação da história, uma narrativa de desejo e repulsa momentâneos. Esta só
avança no tempo aos fins de semana. Durante esse espaço é esquecida, pois há
outros contos mais importantes que sangrarão se não forem referidos. Os nossos
olhos é que não podem sangrar e se, porventura, acontecer temos de o colecionar
com as nossas próprias mãos, pois ninguém mais reparará. Mas voltemos à
história, aquela que só se desenvolve ao fim de semana. O Mal encarna numa
personagem, um Iago, mas com outro nome, mais aproximado d’ Os Miseráveis. E
destrói o meio-sonho de uma vida. Não que quisesse viver desta forma, mas era a
mais cómoda, por isso chamo-a de meio-sonho. Gostava de ter mais sonho, mas
iria incomodar e a leitora já tem o seu sonho completo, incluindo um Iago
aproximado a’ Os Miseráveis que lhe debita aquilo que deve dar aos seus
verdadeiros amigos, controlando a sua existência, pensando por si. Mas não
deixa de ser Iago, uma personagem tomada pela maldade, que nada diz senão com a
intenção de a tocar e resolver o próprio tesão social do qual quase ninguém o
quer aliviar. Só você é que continua a cair nestas malfeitorias, cara leitora.
Mas foi a última vez que lhe falei nisto, cara leitora. Vou colocar-me dentro
da minha caixinha, que por sua vez está dentro de outra um pouco maior, e assim
sucessivamente, perfazendo um total de dezassete caixas. Isto das caixas tem a
sua utilidade. Colocamo-nos dentro de uma e não incomodamos nunca mais. Serve
de apartamento à sociedade. Mesmo que queiramos sair dela há sempre outra por
fora que nos dificulta a evasão. É preciso muita paciência. Cara leitora, não
ligue ao que lhe tenho dito, posso estar equivocado. Além disso já devia ter
percebido que você é que sabe sempre tudo.
Parte II
Dizem que
a linha que separa a sanidade da loucura é muito ténue. Cara leitora, você é
louca. Enfia balas no peito de quem se cruza consigo à primeira oportunidade.
Mate-me, cara leitora, estou desarmado à sua espera. Porque não me mata?
Falta-lhe coragem? Pois, já esperava isso. Tenha dó de si mesma. Dê aos pobres
aquilo de que não precisa, aquilo que a faz sofrer. Neste mundo ou se sofre ou
se faz sofrer, e você faz as duas coisas. Deixe uma delas de lado, pelo menos.
Do mesmo pode ser feliz ou pode fazer outro feliz. O mundo também tem esta
faceta. O problema é que o Bem não faz avançar as narrativas. Estagnemos e
vivamos o momento. Faça por esquecer a sua própria história passada que eu
prometo que farei o mesmo com a minha. Mas é você quem tem de começar, cara
leitora. Já não tenho força para tomar a iniciativa. Pegue na pistola e acabe
comigo de uma vez, se não quiser suspender a história. Já mais nada resulta,
apenas quero paz. Não olhe assim para mim. Quem errou foi você, cara leitora.
Mas eu morro por si e perdoo todos os seus pecados. Não morra por mim, por
favor. O sofrimento foi muito maior do meu lado que do seu. Se há alguém que
deve morrer sou eu, você faz muita falta aos outros. Mas lembre-se que apenas
morri porque quero paz. Morri porque sou bom, e o Bem em nada nos faz avançar.
Cara leitora, isto é revolta. Mas eu amo-a, cara leitora.