No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?


Os Lusíadas, Camões

O Fim do Tempo

“A cristandade sempre governará com leis distintas até que uma nova fonte de ouro e prata for descoberta.”


Profecias, Nostradamus

Provisão

“A Espanha, Castela, Portugal, Aragão estarão muito sujeitos a súbitas alterações e temerão muito morrer, tanto os jovens quanto os velhos; e por essa razão, eles se manterão bem aquecidos, e em geral contarão o seu dinheiro, caso o tenham.”


Prognósticos Pantagruélicos, Rabelais

Não o sonho

Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.

Atropelamento e Fuga, Manuel António Pina

Tortura

"Eu queria dizer que isto era sentido, e não pensado, pela bondosa menina; mas não sei se o rigor filosófico me permitirá a linguagem; e, contudo, não vejo como de outra sorte dar conta deste frequente fenómeno psicológico – o da persistência de certas crenças irracionais, nos espíritos mais vigorosos e lógicos."

Uma Família Inglesa, Júlio Dinis

Estar Só É Estar No Íntimo do Mundo

Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

Poemas Inéditos, António Ramos Rosa

Sábado 31


Mar Sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós.
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

Dia do Mar, Sophia de Mello Breyner

Aniversário


A vida é uma estrada que nos conduz por inusitados caminhos. Recordo aquele aniversário, apenas sonhado, em que viajei até ao Porto para um passeio pelo parque, contigo. Ainda suado da caminhada desde a estação, encontro sombra junto das frondosas árvores, abrigos naturais, que ajudam a recuperar o fôlego. Aí pego na tua mão e corro pela relva, levando-te até ao lago coberto de verdete. Parece sólido, apetece caminhar sobre ele, testar o seu limite de resistência. Aproximas-te dele e toca-lo. Formam-se pequenas ondas que se arrastam até à borda onde me encontro. Foi aí que tive a certeza de que te amo. A tua simplicidade abateu-se sobre mim de uma forma que eu nunca tinha sentido. Nesse momento posso viver ou morrer contigo, é um tanto faz.
Volto a procurar a tua mão e levo-te para fora do parque. O calor já não sufoca tanto, é mais fácil deambular pela rua. A fome começa a apertar e é necessário satisfazê-la. Como a felicidade não depende daquilo que se come, uma francesinha chega para saciar o animal. Do jantar pouco me recordo em relação a ti, a não ser que tinhas um sorriso de orelha a orelha e que falavas como se a humanidade canalizasse toda a sua voz por ti. Como gosto de te ouvir falar! A tua palavra é alegria, que se mistura com o ar, perfumando-o. O teu olhar transmite-me confiança e sinto-me completamente preenchido por ela. É muito bom perceber que alguém acredita em nós. Espero que isto continue para sempre.
A noite não ficaria completa se não fossemos ouvir música a um bar. Uma sala antiga, com uma certa aura mágica. Havia mesas para dois, quadradas, cobertas com toalhas vermelhas, junto às laterais, abrindo uma enorme clareira, utilizada pelos clientes como espaço de dança. Sentámo-nos perto da porta e pedimos apenas um copo de água. Observando a sala, que se encontrava a meia-luz, reparei num casal que discutia no canto oposto ao que me encontrava. A mulher olhava o homem com um ar carrancudo, enquanto este se apresentava apreensivo, como se não percebesse por que razão discutia. Neste momento a minha atenção foi desviada por algo que tocava na minha mão. Era o teu indicador que me chamava de volta. Só aí compreendi o que ele me queria. A música que tocava era a “Wonderful Tonight” do Eric Clapton. E tu pedias que a dançasse contigo. Como um cavalheiro, peguei na tua mão, levei-te à pista e coloquei-te as mãos na cintura, enquanto fazias o mesmo nos meus ombros. A lentidão dessa balada favorece-nos, é mais fácil conduzir-te. E eu gosto de sentir o teu coração a palpitar, é um teste à minha própria vida. Há músicas que nunca deviam acabar, mas a verdade é que esta chegou ao fim. Saímos para a rua e já encontramos uma leve brisa, normal na zona da Ribeira. Chegamo-nos ao rio e ficamos no silêncio a observar a água. Eu não penso em nada, apenas observo e interiorizo toda aquela água calma. Já tu pareces refletir sobre algo que eu não sei. É importante, de certeza, mas está fora da minha compreensão.
Chegou a hora de voltar. O comboio que nos trouxe é o mesmo que nos devolve a Espinho. “Ainda há uma padaria aberta, podíamos ir lá buscar qualquer coisa”. Acabámos por levar dois travesseiros e dois chocolates quentes. Resolvemos cear na praia, apesar da presença de um frio cortante. Notei que tu tremias, por isso queimei a caixa dos bolos e uns pauzinhos que por lá havia. Para além da fogueira, tirei o meu casaco e cobri-te com ele. Mas isso não te chegava, tive de te abraçar. E foi nesse conforto que bebemos o nosso chocolate quente. Entretanto, o teu olhar ficou triste, cheio de dúvidas e, olhando o mar, perguntaste “Como vai ser agora?”. Fiquei sem perceber qual a resposta esperada, mas mesmo assim respondi. “Não sei o que é suposto acontecer, mas percebi que é impossível esconder a beleza do mundo. Seria um acto puramente egoísta. A beleza é melhor quando partilhada, fazendo o outro feliz. O que vai ser agora é o que tu fizeres. Mostro-te um caminho, queres segui-lo? Gostava que o seguisses, que o fizesses comigo. Lembra-te que é mais fácil enfrentar o mundo de mãos dadas. «Quero vivê-lo em cada vão momento e em seu louvor hei de espalhar meu canto e rir meu riso e derramar meu pranto ao seu pesar ou seu contentamento». Quero partilhar a minha vida contigo, amo-te!”. E beijei-te.

Dom Casmurro

Copos espalhados pela mesa. O grupo de convivas bebe o vinho da união, alegra-se e esquece o demais. Um deles fala desalmadamente dos seus pais, outro das suas saídas noturnas, outro das suas namoradas… É neste ambiente quente que se desenrola o ato da traição. Chega a rapariga, com calças de ganga justas e uma camisa branca. Do lugar onde está, um dos convivas olha discretamente para ela. Os olhares são furtivos e repetidos, mas nos quais se denota uma vergonha imensa, mas também um amor sincero, não apenas desejo carnal. À parte disto, um outro dos do grupo limita o seu campo de visão à mulher. Não conversa mais, a não ser que seja para se exibir, conquistando a atenção da rapariga. Esta mostra que necessita de atenção e, mal saem do restaurante, embora misturados com o grupo, os dois juntam-se, formando uma espécie de grupo à parte e nunca mais se largam. Há apenas uma pessoa que repara nisto: aquele que tem um amor puro e que apenas lança olhares. O par fica junto até à hora da despedida. Quando chegarem cada um a sua casa vão trocar mensagens, talvez até combinar encontros para os seguintes dias. Mas antes de tudo isto, a rapariga vai no carro com o seu amigo calmo e envergonhado. Quando findou a viagem, ela olhou-o descontraidamente e atirou-lhe com um ‘boa noite’ terno mas desinteressado. O rapaz sente-se invadido por uma imensa tristeza, mas responde também afetuosamente. Não se devem direcionar os conflitos para quem os não merece. O jovem entra em casa e lança-se para cima da cama, chorando incontrolavelmente: ‘Porque é que tenho amigos?’

Baile (fim)


Primeiro a toalha, vermelha-sangue, escorrendo pela mesa à medida que era desdobrada. De seguida os copos do mais rico cristal, brilhantes, refletindo a toalha. Vêm os pratos e os talheres, reluzentes, contribuindo de forma harmoniosa para uma apetecível visão desde a entrada do salão.
Não se pode esquecer o centro de mesa. Rosas brancas foram as flores escolhidas. O contraste entre estas e a toalha é perfeito. Há uma ousadia que se junta a uma pureza, apimentando uma noite que deverá ser inesquecível.
Quando os convidados entrarem as luzes vão deixar tudo numa penumbra assombrosa. As senhoras vão agarrar o braço aos acompanhantes, quer seja com medo de uma possível queda, quer seja pelo simples espanto de ver uma sala tão deslumbrante. É nela que vão passar uma noite, ou talvez “a” noite. Os senhores vão embebedar-se, tendo, porém, sobriedade suficiente para agarrar a companheira ou uma outra qualquer que esteja próxima. Já as senhoras vão estar preocupadas com a sua vestimenta e maquilhagem, até porque pode ser ali que encontrem a garantia de um futuro radioso. E ninguém pode ter um bom futuro se estiver mal vestido.
Que disparate! Estes pensamentos ocultaram da mente o mais importante: a lista dos convidados daquela mesa. Branca como as rosas, a lista tinha oito nomes, escritos a negro com uma letra curvilínea. Pedro começou a imaginar como seriam as figuras por trás desses nomes, até que chegou ao sétimo. Ai, mais do que imaginar, ele viu. Viu o vestido dançante num pequeno corpo delicado e perfumado. Viu o minúsculo sapato branco que se movia freneticamente. A carteira tinha-a ele na mão. E Pedro chorou. Eram a saudade e a incompreensão que o matavam, lentamente, ao ritmo de uma imparável ampulheta. Cinco minutos depois, já recomposto, dentro do possível, olha então para o oitavo nome. Também o visualiza claramente. Um homem enorme, bruto, mas cuja autoridade tudo atraía a si. Talvez fosse por isso que Raquel ficasse com ele. E Pedro sentiu a raiva no estômago, espalhando-se de seguida pelos seus membros. Era um verdadeiro monstro que crescia dentro dele, matando-o da mesma forma que a saudade o fazia.
A única atitude que Pedro poderia tomar era a de ser Homem, portanto o que ele simplesmente saiu do salão, foi ao cacifo buscar tabaco e sentou-se num banco de jardim, à conversa com os velhos que jogavam cartas, tragando lentamente um cigarro.

A máquina-mundo


“Talvez não seja maravilhoso ser bom, 6655321zinho! Talvez seja horrível ser bom. E quando te digo isto, compreendo como isto te pode parecer contraditório. Sei que vou passar muitas noites em branco a pensar nisto. Quais os desígnios de Deus? Quererá Ele o Bem, ou a escolha do Bem? Um homem que escolhe o Mal, será por acaso ou de certo modo, melhor do que um homem a quem impõem o Bem? Difíceis e profundas dúvidas, meu pequeno 6655321.”

Anthony Burgess, A laranja mecânica

Soneto do Corifeu, in Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes



São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.
Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.
Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.

Soneto da Fidelidade, de Vinicius de Moraes

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Blindness, realizado por Fernando Meirelles



Em terra de cego, quem tem olho é rei (e quem o não tem vê bem na mesma).

Binómio


Um rosto banhado em luz. O cabelo castanho refletia o sol, numa fecundação perfeita da criação, enquanto a expressão era dupla, confusa portanto.
A lua também possui duas faces, não deixando de ser o mesmo corpo. O humano apresenta a face social e a individual. A social é benigna, risonha e falsa. O sorriso é o correto na relação interpessoal. “És um estúpido do caralho!!!”. O outro ri-se. “Porque te ris?”. “Não sei, mas é melhor que fazer qualquer outra coisa”.
A tristeza tem de ser individual. É na sombra que a melancolia desperta, florescendo como se de uma planta se tratasse. O olho está mais aberto na escuridão. Nada ofusca a procura da essência quando a solidão do deserto não tem fim. Será isso?
É assim o teu rosto, fraturado em dois, um jogo de forças impossível de parar. Consegues conciliar?
(A Vontade, a Moral e a Decisão são IMPORTANTES)

Ser "Cristão"


Um dia decidirei quando será o dia de dizer depois de amanhã, e talvez nem seja preciso, se a morte definidora vier antes desobrigar-me do compromisso, que essa, sim, é a pior coisa do mundo, o compromisso, liberdade que a nós próprios negámos.

O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago

Bloqueio


Há uma encosta, com pouca inclinação e um piso muito irregular. No cimo dessa há uma bola, composta por recordações. Estamos no fundo da encosta e reparamos que a bola se liberta. Começa a rolar muito devagar, mas logo atinge uma grande velocidade. Já não rola, salta. Com cada pulo que dá, amolga as memórias. Estas ficam cada vez mais homogéneas, uma massa uniforme. A massa resultante denomina-se sentimento. Cada vez mais próxima, a bola amedronta-nos. Somos esmagados antes que ela nos toque. No próximo segundo somos atingidos, ficando ela sobre nós, subjugando-nos com o seu peso. Não seguiu o seu caminho, estacou, de propósito, apenas pelo prazer da dor. Olho-a e questiono-a: “Como saio daqui?”

Enfermo


A doença consome,
A solidão pega-se,
A recompensa consola
E a morte mata.

Morrer


Na Terra tudo vive – e só o homem sente a dor e a desilusão da vida.

“Civilização” in Contos, Eça de Queirós

The Letter That Johnny Walker Read


A paisagem corre perante os nossos olhos. Estacamos a observar uma grande massa uniforme, não diferenciando qualquer pormenor no meio desta. A velocidade a que o mundo se desloca é muito superior àquela a que nós estamos habituados. A janela é um bom óculo para efetuar esta verificação.
Podemos ver sem que os outros se apercebam, sequer. Dá-nos uma sensação de conforto e bem-estar, pois temos medo de olhar o outro diretamente. Medo de ser repreendido pela simples e inocente tentativa de conhecer um pouco mais.
Por isso foco-me na Natureza. Esta é bela e permite a compreensão do Homem. A arquitetura de ambos é padronizada, respondendo a critérios básicos de sobrevivência. O que os diferencia é o livre arbítrio e a arte, esta como aplicação de uma teoria a cada caso concreto. Não olho para o Homem, mas sim para o que ele produz. As casas são fabulosas. Mas as árvores também o são. E crescem naturalmente, adaptando-se ao meio em que vivem. O Homem recria o ambiente à sua volta, modificando-o exaustivamente, o que não invalida que a sua obra seja profícua. Afinal também me foco no que é humano. O Homem é uma criatura maravilhosa e asquerosa. O medo e a cobiça o tornam pouco digno da sua condição nominal.
Cedo perante as minhas conclusões anteriores. Gosto do que é estático e do que não pensa, pois tenho medo, um imenso medo da imprevisibilidade de Homem, que tanto constrói como destrói. E a destrutibilidade deste ser é sempre em grande escala. Mas, passando ao lado deste devaneio, eu via o estático em movimento. Alguns podem chamar isto de loucura, mas eu prefiro chamar comboio.
O interior é em tons de amarelo e vermelho, miscigenados de tal forma a impactar o mais desprevenido dos passageiros. É fervilhante sentir que sou um dos poucos a usufruir desta maravilha tecnicista. Olho para trás e vejo mais três pessoas na minha carruagem, com o mesmo ar que eu. É bom sentir que não estou sozinho (isto é mentira!).
Chegou o fim da linha. Desço para a plataforma. Observo mais uma vez o comboio, não para me despedir, mas para lhe dizer um até breve. É também amarelo, mas conta com o potente ferro a matizar a visão. É a melhor palavra para descrever o comboio, potência. É potente a realizar viagens, por isso gosto dele. Viajo pelo meu interior e descubro-me, embora não encontre solução para o homem que sou.
Finalmente o meu olhar descai para o sobrescrito que tenho na mão. Este contém a canção-poema que li na alvorada da viagem. A minha mulher esperava amor e as crianças o alimento, mas só lhes podia oferecer uma garrafa de bagaço. Tive medo e fugi, desvairado.

Como o Vento


O fugaz passeio que me leva ao conhecimento da cidade esconde a beleza demorada desta. É um manto de modernidade, um ruído furioso da maquinaria que impede a perceção do mundo no seu estado puro.
Mas o mundo tende a impor-se, de uma qualquer forma. Pela raridade do que é natural, atualmente destaca-se a pureza no meio do betão. Levanta-se o vento. O cabelo é fustigado pela sua força. Apesar do calor da solidão, há algo novo que este vento traz. Uma mudança invisível, que nos conforta interiormente, pelo simples facto de adrenalizar o sentimento de novidade, necessidade do ser humano.
O cabelo levanta voo. A força exercida pelo vento é imensa. Urge encontrar abrigo, que nos proteja como se de uma mãe se tratasse. Aproximo-me do tronco e só então percebo que a árvore já fora despida. Reconheço que não tinha reparado nesse pormenor. A sua postura sedutora envolveu-me, aliada já ao descrito estado de nudez. O seu erotismo dançava-me em frente aos olhos. Enganei-me. Esta árvore não era mãe, mas sim uma prostituta. Mesmo assim não resisti à maternidade desta meretriz e escondi-me nela. O seu regaço era quente como nunca tinha visto. Mas então pensei que nunca tinha trocado a segurança pelo prazer. Já não estava à procura de abrigo, demandava aventura, uma qualquer forma de alheamento feliz e compensatório.
Disciplinei o meu cérebro. Levantei-me e voei com o vento para onde ele me quis levar. Afinal o vento foi feito para nos fazer mover ao seu sabor, não para nos obrigar a esconder, com medo. Ir com o vento é ter coragem.

Canção do Mestiço


Mestiço!

Nasci do negro e do branco
E quem olhar para mim
É como se olhasse
Para um tabuleiro de xadrez:
A vista passando depressa
Fica baralhando cor
No olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
Uma alma feita de adição
Como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
O branco cheio de raiva
Contou os dedos das mãos
Fez uma tabuada e falou grosso:
-mestiço!
A tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
            Mas eu não me danei…
E muito calminho
Arrepanhei o meu cabelo para trás

Fiz saltar fumo do meu cigarro
Cantei do alto
A minha gargalhada livre
Que encheu o branco de calor!...

Mestiço!

Quando amo a branca
            Sou branco…
Quando amo a negra
            Sou negro.
            Pois é…

Ilha de Nome Santo, Francisco José Tenreiro

Raticidade



Como é que um gajo se atira para a frente com uma guitarra e quer encarar o público, mas depois tem vergonha de falar de coisas que acontecem, como chorar porque a namorada não gosta dele? Desde sempre faço questão de falar de assuntos que nos tornam frágeis – mas porque somos frágeis na cabeça, não pela ação em si. Temos uma regra: não ter um dicionário de temas tabu; às vezes quem faz música parece que tem um dicionário corrente e um de tabus, onde não se toca. Há que falar desses temas, torná-los naturais, deixar esses preconceitos e essa forma de estar tacanha. Temos de crescer, e crescer é não só encarar as nossas vitórias como também as nossas derrotas e fraquezas. Lutar contra esta ideia de que, se não ganhas à Espanha, o mundo acabou, quando nas derrotas também conseguimos ver as coisas boas, como a perceção de que há gente melhor que nós, e que temos de trabalhar ou lutar para conseguir ser como eles. Não é um gajo desaparecer ou deixar de falar, porque isso te perturba.

Virgem Suta na Blitz

O Passageiro Walter Benjamin, de Ricardo Cano Gaviria




Um tumulto. Um sofrimento inexplicado e inexplicável. Morrer é a única salvação para um homem que nunca amou nem foi amado. Nem a própria liberdade ele amava, embora a procurasse. Demandou em vão. Sucumbiu perante um obstáculo – o próprio ser humano. A obstrução efetuada pela mentalidade dos Homens favorece a corrupção e destruição de qualquer sonho, inibe a luta. A Vida é uma luta que magoa mas não fere. O único caminho é a Vida. E o fracasso é a morte. Morre-se por não obter dividendos da vida. Estamos sedentos de amor, mas sempre sacrificamos o amor por coisa nenhuma. Nem o objetivo “Liberdade” é suficiente para renegar a falta de amor. Walter Benjamin é assim que morre. Mas antes da morte já estava morto. Percebe que errou uma vida inteira. Dedicou-se à quantidade e não à qualidade. Pode não ter sido livre para se opor ao regime, mas foi livre para escolher amar. A mulher é um plano essencial neste processo de conhecimento de si mesmo. Não sentiu um amor de mãe na infância e procurou-o em várias mulheres, que nunca o conseguiram dar, pois Benjamin não se tinha descoberto a si próprio. A auto-análise realizou-se sob o medo mais infantil de algo que não existe: um papão. Aprender a defender-se sozinho pode ter custos demasiado elevados, tendo por exemplo a impreparação para a sociedade. E o medo prolonga-se até ao desespero. A solidão é o pior que pode acontecer e Walter Benjamin prova-o. A solidão leva ao medo, o medo ao desespero, o desespero ao pensamento, o pensamento à análise, a análise ao arrependimento e o arrependimento à sensação de fracasso. E o fracasso é a morte. Walter Benjamin, um errante peregrino procurando o sonho americano, sem um sonho próprio, vivendo o momento. Finalmente em paz.

Universalidade



Se as coisas forem aparência, também eu sou aparência e elas são, assim, iguais a mim. É isso que as torna tão queridas e veneráveis aos meus olhos: elas são iguais a mim. É por isso que as posso amar. E isto é um ensinamento que te fará rir: o amor, Govinda, parece-me ser o mais importante. Compreender o mundo, explicá-lo, desprezá-lo, são coisas que poderão agradar aos grandes pensadores. Mas eu considero mais importante amar o mundo, não o desprezar, não o odiar nem me odiar, observá-lo, a mim e a todos os seres com amor e admiração e respeito.

Siddhartha, Hermann Hesse

Abrir as Asas e Voar



Que triste figura fazem os que imaginam
Que o mundo só existe para eles
E o tentam descrever num poema ou num romance.
Este pequeno poder ilusório
Infestou há muito as páginas dos livros
Suportado pela bênção de quem os louva.
Muito padecerá quem assim pensar.

A literatura nada muda. Não pode.
Poderão, se tanto, mudar as regras
Que a regulam e limitam.
Toda a vida se escreveram livros
Que falam de outros livros
Que falam de outros lugares,
Que falam de outras pessoas.
A Literatura está cansada
Dos jogos do poder e da vaidade
Que em nome dela se praticam.
A literatura quer viver a sua vida
Sem ter quem a policie e interprete.
Não quer estar confinada aos laboratórios,
Nem ao exercício interminável da pesquisa.

Ela fala de pessoas e dos seus dramas
E não gosta que a cataloguem ou classifiquem.
Às vezes apetece-lhe abrir as asas e voar.

O Livro Branco da Melancolia, José Jorge Letria

Olhar




Os olhos limitam o ser humano. Não vamos para além do que eles nos mostram. Podem enganar-nos, podem seduzir-nos. A ilusão é por vezes tão forte que nos faz cometer erros. Temos de usar muletas, ou melhor, óculos. Tudo é filtrado, conduzido para o cérebro através de um único canal, sem qualquer desvio.
A linearidade é o mais comum neste tipo de casos. Ou se vê, bem ou mal, ou não se vê. No entanto há certos pormenores que sempre ressaltam. Ocorre a chamada arritmia ou, simplesmente, quebra de rotina. Nos momentos de pressão o ritmo aumenta, o sangue ferve e a decisão sai, livre do conceito, aproximada ao vazio da racionalidade. É perto do fim que as decisões se tornam mais intensas. Cada momento é elevado à magnificência e agradecido sem reservas.
Por isso beijo os olhos. Procuro completar a visão com o tacto. É uma imagem em que se pode tocar. Até cheirar e saborear. E mesmo ouvir. A verdade (linear) é substituída pela completa sedução, que me demove do mais firme objetivo. E sinto, sinto, sinto. Tento não perder nada, mas infelizmente desaproveito tudo. Morro. Inútil.

A Caixa Mundo



Quem comete um erro é excluído; é fechado dentro de uma caixa. Quem está fora vê apenas a caixa. Mas quem está fechado, excluído, consegue ver cá para fora. Vê tudo, vê-nos a todos.
Em cada compartimento há dezenas de caixas. Milhares de caixas por todo o lado. A maior parte delas vazia. Outras têm lá dentro pessoas excluídas. Ninguém sabe quais as caixas que têm pessoas.
As caixas são tantas que ninguém lhes dá importância. Pode estar lá uma pessoa, até a que amas, mas nem olhas. Já não produzem efeito. Passas por elas centenas de vezes.

Jerusalém, Gonçalo M. Tavares

Terra


É que a vida não gosta de sofrer. A terra anda procurar dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos. Sim, faz conta ela é uma costureira dos sonhos.
Terra Sonâmbula, Mia Couto

Guerra e Paz



Parte I

Não há compaixão. A história do horror continua. O Mal é o motor da história. O Mal pode encarnar em tudo. E não conseguimos soltar as amarras de tudo. Viver com ou sem? Faz diferença retirar a palavra ‘viver’ da pergunta anterior? Agora não. A ideia já foi compreendida. A presença não interessa. É a ausência, cara leitora, que lhe revelará a minha presença. E é esta falta que motivará a continuação da história, uma narrativa de desejo e repulsa momentâneos. Esta só avança no tempo aos fins de semana. Durante esse espaço é esquecida, pois há outros contos mais importantes que sangrarão se não forem referidos. Os nossos olhos é que não podem sangrar e se, porventura, acontecer temos de o colecionar com as nossas próprias mãos, pois ninguém mais reparará. Mas voltemos à história, aquela que só se desenvolve ao fim de semana. O Mal encarna numa personagem, um Iago, mas com outro nome, mais aproximado d’ Os Miseráveis. E destrói o meio-sonho de uma vida. Não que quisesse viver desta forma, mas era a mais cómoda, por isso chamo-a de meio-sonho. Gostava de ter mais sonho, mas iria incomodar e a leitora já tem o seu sonho completo, incluindo um Iago aproximado a’ Os Miseráveis que lhe debita aquilo que deve dar aos seus verdadeiros amigos, controlando a sua existência, pensando por si. Mas não deixa de ser Iago, uma personagem tomada pela maldade, que nada diz senão com a intenção de a tocar e resolver o próprio tesão social do qual quase ninguém o quer aliviar. Só você é que continua a cair nestas malfeitorias, cara leitora. Mas foi a última vez que lhe falei nisto, cara leitora. Vou colocar-me dentro da minha caixinha, que por sua vez está dentro de outra um pouco maior, e assim sucessivamente, perfazendo um total de dezassete caixas. Isto das caixas tem a sua utilidade. Colocamo-nos dentro de uma e não incomodamos nunca mais. Serve de apartamento à sociedade. Mesmo que queiramos sair dela há sempre outra por fora que nos dificulta a evasão. É preciso muita paciência. Cara leitora, não ligue ao que lhe tenho dito, posso estar equivocado. Além disso já devia ter percebido que você é que sabe sempre tudo.

Parte II

Dizem que a linha que separa a sanidade da loucura é muito ténue. Cara leitora, você é louca. Enfia balas no peito de quem se cruza consigo à primeira oportunidade. Mate-me, cara leitora, estou desarmado à sua espera. Porque não me mata? Falta-lhe coragem? Pois, já esperava isso. Tenha dó de si mesma. Dê aos pobres aquilo de que não precisa, aquilo que a faz sofrer. Neste mundo ou se sofre ou se faz sofrer, e você faz as duas coisas. Deixe uma delas de lado, pelo menos. Do mesmo pode ser feliz ou pode fazer outro feliz. O mundo também tem esta faceta. O problema é que o Bem não faz avançar as narrativas. Estagnemos e vivamos o momento. Faça por esquecer a sua própria história passada que eu prometo que farei o mesmo com a minha. Mas é você quem tem de começar, cara leitora. Já não tenho força para tomar a iniciativa. Pegue na pistola e acabe comigo de uma vez, se não quiser suspender a história. Já mais nada resulta, apenas quero paz. Não olhe assim para mim. Quem errou foi você, cara leitora. Mas eu morro por si e perdoo todos os seus pecados. Não morra por mim, por favor. O sofrimento foi muito maior do meu lado que do seu. Se há alguém que deve morrer sou eu, você faz muita falta aos outros. Mas lembre-se que apenas morri porque quero paz. Morri porque sou bom, e o Bem em nada nos faz avançar. Cara leitora, isto é revolta. Mas eu amo-a, cara leitora.